Felipe Torres
Especial para o Hoje em Dia
No universo do escritor mineiro João Guimarães Rosa, Miguilim mora com sua família em Mutum, lugar remoto do sertão das Gerais. Inteligente e delicado, o garoto, de 8 anos, está sempre empenhado em compreender as pessoas e as coisas que o cercam, recriando a cada gesto ou palavra o seu próprio mundo. Um universo infantil – sensível e emotivo – que reflete as etapas da sua vida tumultuada, imersa em dramas pessoais.
Certo dia, um tal Dr. José Lourenço descobre que Miguilim sofre de miopia e resolve lhe emprestar os óculos. Quando o garoto abre os olhos, leva um susto. As lentes lhe rendem uma visão nítida, bonita e atraente do que antes era feio e sem graça. A nova percepção, agora privilegiada, guia a criança a diferentes caminhos e a faz explorar ainda mais a riqueza de detalhes das relações sociais que ele tem contato.
E são justamente as descobertas de Miguilim, presentes na novela “Campo Geral”, a inspiração para a peça teatral “Sempre Alegre, Miguilim”, que cerca de 350 alunos do Projeto Valores de Minas apresentarão, a partir desta quinta-feira até o dia 7 de dezembro, às 19h30. O evento acontece no espaço do Serviço Voluntário de Assistência Social (Servas), – na Avenida dos Andradas, 767, Centro, em Belo Horizonte – associação civil que viabiliza o programa há quatro anos. O preço da entrada é um quilo de alimento não perecível.
O espetáculo é apenas o “toque final” do Valores de Minas. Desde março, o projeto apresenta a 500 estudantes, dos 14 a 24 anos, vindos de escolas públicas estaduais, a “magia” da arte e da cultura. Para que eles, assim como a personagem de Guimarães Rosa, possam também desfrutar dos seus “óculos imaginários” e se conscientizar que a vida oferece novos caminhos, ou seja, pode ser ressignificada. A arte como instrumento de transformação.
Entre as oficinas de teatro, música, circo, artes plásticas e dança, Daniele Souza, de 21 anos, escolheu participar da última, já em 2005. “É felicidade demais estar aqui. Sempre gostei de dança e tento me aperfeiçoar nas aulas”, diz ela. Daniele, além de aprender, agora também acumula outra nobre função: a de ensinar. Ela foi convidada a participar do módulo “Multiplicadores”, que capacita estudantes para se tornarem agentes de disseminação das suas experiências na família, comunidade e escola.
“Sei como organizar minhas idéias e passá-las aos outros. Dou aulas de dança para crianças e idosos da terceira idade no meu bairro”, ressalta a jovem, que mora no Bairro Tirol, região do Barreiro. Daniele se mostra contente com o trabalho e tem a certeza de uma coisa: “cresci em termos de cidadania. Antes eu só ouvia falar em ética, compromisso e responsabilidade. Agora, coloco tudo em prática”, diz.
Ao contrário de Daniele, Eloísa Gonçalves, de 15 anos, começou no Valores de Minas neste ano, mas carrega consigo a mesma animação. “Fiz de tudo para integrar as oficinas artísticas. Fazia parte de um grupo de axé e percebi que poderia aprender novas modalidades, como o jazz”, afirma. Eloísa lembra que passava a maior parte do seu tempo livre de forma ociosa, na rua ou em frente à TV. “Mudou muita coisa no meu comportamento. Estou amando fazer dança, que me deixou mais esperta e concentrada. Com isso, meu rendimento na escola aumentou. Sou até elogiada pelos professores”, empolga-se. Ela não se esquece de agradecer seus pais, os primeiros a lhe incentivar a buscar o aprendizado cultural.
Programa acontece em três fases
As atividades do programa desenvolvem-se em três fases. No primeiro semestre, os jovens têm acesso a todas as oficinas, numa carga horária de 12 horas semanais. A partir daí, se especializam, de acordo com interesse, aptidão ou talento, na área que pretendem cursar . Os preparativos e o espetáculo teatral são a fase final. Todos os estudantes colaboram, conjuntamente, na elaboração do roteiro, da trilha sonora e da confecção dos figurinos, adereços e cenários da peça. Aulas de Cidadania e Ética, História da Arte e Literatura também são ministradas no período.
O professor e coordenador musical, Ronilson Silva, músico da banda Berimbrown, conta que a alteração comportamental dos garotos é notória durante o convívio no projeto. “Eles chegam aqui acanhados, mas, aos poucos, como são de regiões diferentes, começam a trocar idéias e as experiências que já viveram. Com certeza, entram de um jeito e saem de outro”, assegura Silva. O jovem Edmilson Ferreira já sente a própria mudança de mentalidade. “Eu era tímido, não conversava com ninguém. Até que me soltei e fiz muitos amigos”, alegra-se.
Ronilson revela também que alguns dos seus alunos acabam seguindo carreira na área. “Meninos que passaram por aqui formaram uma banda de soul/funk, chamada ´Black de Neve´. Fiquei sabendo que eles estão bem e continuam firmes”, afirma o professor. Rodrigo Marinho, de 24 anos, é um dos que não quer mais largar a música. O violonista já pensa até na universidade. “Estou terminando o Ensino Médio e vou fazer um curso superior de música, para me especializar no violão erudito. A oportunidade de continuar fazendo o que gosto”, garante. Rodrigo afirma que aprendeu muito no Valores de Minas, principalmente no quesito “harmonia”, segundo ele, válido tanto para as notas musicais quanto para os momento de encarar os desafios.
“Nossa função é mostrar que a arte existe. Os meninos não sabem o que é a arte. Então, damos corda a eles e apontamos os caminhos, até em relação ao mercado de trabalho”, diz Marina Bylaardt, coordenadora da oficina de artes plásticas. E foi o prazer de descobrir o “criar” que atraiu Eduardo Rodrigues, de 15 anos, para as aulas de artes plásticas. Rodrigo não pára um minuto, sempre focado em deixar os figurinos, os adereços e o cenário da peça teatral perfeitos. “Desenho, escultura e pintura, enfim, é tudo legal”, resume ele.
E sabe aquelas acrobacias circenses, inimagináveis de serem executadas? Pois para Jocasta da Cruz elas não metem mais tanto medo. “Eu já havia feito circo antes, mas no projeto aprendo novos números, técnicas e muitas acrobacias. Me deparo com algo novo todas as horas. Participar do projeto é recompensador, mas difícil”, destaca.
Jocasta tem razão. Samira Ávila, responsável pela oficina teatral, assegura que é preciso muita seriedade e comprometimento para integrar o projeto. “O Valores de Minas é uma brincadeira séria, que exige empenho e doação dos participantes. Ao longo dos dias, perdemos alguns dos freqüentadores, pois eles não conseguem se entregar totalmente ao programa. Muitos já trabalham, o que inviabiliza o processo”, esclarece Ávila.
Na direção-geral do espetáculo “Sempre Alegre, Miguilim” – ao lado do diretor teatral Carlos Gradim – Samira Ávila esteve presente nos quatro anos do Projeto Valores de Minas. “Tudo era um sonho, mas o programa aconteceu”, diz.